Sozinhos, mas não sós
Leio a entrevista ao Público de Jean-Claude Kaufman. Ele tem razão, alguns casais desejam viver juntos, outros preferem não partilhar todos os dias o mesmo tecto. Na coluna ao lado, os respeitáveis números: um em cada três franceses vive só, na Dinamarca há 45% de lares com uma pessoa, em Portugal a percentagem é de 17%, mas vem subindo. Quanto a mim, não preciso das estatísticas oficiais - ouço vidas por profissão.
Muitas apenas teoricamente a solo, há portugueses que vivem sozinhos e não sós, amam sem partilhar a caixa do correio. Alguns já o fizeram, com ou sem papéis assinados. O discurso destes gira, com frequência, à volta da seguinte ideia - “venha o amor, mas juntar outra vez os trapinhos é que não!” Ao escutá-los, é impossível não pensar que desenvolveram – ou simplesmente descobriram? - uma certa “claustrofobia” afectiva e espacial, necessitam de espaço psicológico e físico privado, embora no âmbito de uma relação. Quando esta cresce entre duas pessoas com a mesma opinião, o consenso torna-se fácil e conduz a vida de casal distribuída por dois lares (como é evidente, as exigências económicas envolvidas e o tipo de “lastro cultural” que permite esse arranjo fazem dele quase apanágio das classes média e média alta). Se as duas têm posições divergentes - sobretudo quando não pertencem à mesma geração, sendo a mulher habitualmente mais jovem no caso das relações heterossexuais -, os problemas surgem, com uma a interpretar a relutância da outra em coabitar como sinal de fraco amor. O sofrimento agudiza-se quando a divergência se estende à hipótese de um filho, pois é frequente o mais velho tê-los de uma ligação anterior.
Entre os mais jovens, penso que deveríamos associar a este fenómeno algumas situações em que os filhos permanecem na CP (casa dos pais), apesar de uma autonomia financeira que lhes permitiria sair. Na realidade, ouço muita gente dissertar sobre as vantagens inerentes: poupança, roupa lavada e alimentação de qualidade garantida. Tal opção liberta verbas para um quotidiano mais desafogado e em grande parte livre, mesmo no caso das raparigas, atendendo à mudança de atitudes parentais no que toca a noites, fins- de-semana e férias passadas fora. Alguns, saindo embora, defendem que a transição directa de um agregado familiar para outro seria um erro grave, preferindo um período de autonomia, mais ou menos longo. Fascinante é a aparição nas mulheres jovens de discursos ditos “tipicamente masculinos”, como o que privilegia a ascensão profissional ou – ó supremo despautério em país machista! – o que receia opções afectivas precipitadas, sem experiência suficiente, incluindo sexual (aumentaram exponencialmente as situações em que raparigas fazem marcha-atrás perante um casamento com data marcada, alegando “não terem a certeza” ou “não estarem preparadas para esse tipo de compromisso”). Tudo isto se enquadra num banho cultural que legitima a felicidade e a realização individuais e dessacralizou o casamento, visto como o encaixe de dois projectos de vida e não como uma instituição cujos “direitos” se sobrepõem aos das pessoas. E assim, estas preferem muitas vezes não assinar papéis, ou a eles chegar depois de uma experiência de coabitação e por terem decidido pedir à cegonha que passe lá por casa e povoe um berço.
Uma última palavra em relação aos afectos envolvidos. No nosso país, aqui e ali, ainda ouço apostrofar solitários de mãos dadas por recusarem uma união para o melhor e o pior (a sonoridade católica não engana). O reparo sugere que tais ligações são superficiais, egoístas, imaturas. Algumas, seguramente, como tantos casamentos e uniões de facto. Mas devo dizer que vejo amiúde, em situações de crise, as pessoas envolvidas coabitarem, por ser esse o mecanismo mais adequado para lidar, por exemplo, com uma doença. Problema ultrapassado, regressam ao namoro sob dois tectos. Os arranjos do amor serão cada vez mais diversos, considero inaceitável decretar de segunda os que não “respeitam” os cânones da família nuclear católica ou a perfeição em cinemascope dos filmes da Disney. Inaceitável e sobretudo ingénuo, a qualidade de uma relação não é – nem nunca foi! – assegurada pelo seu modelo estrutural. Como a boa música, ela apoia-se mais em executantes talentosos e afinados do que na acústica do lugar escolhido para o concerto.
-- júlio machado vaz a dominar outra vez
27 abril 2006
mai nada.
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