30 janeiro 2008

descobri recentemente as crónicas do sr. baptista-bastos no dn. aqui vão as duas que li:

"Rodrigo morreu às 9.40 de sexta-feira, 18, na rua, frente ao Hospital de Anadia. Rodrigo ia fazer três meses. Às 8.40, o pai vira o filho com a cara roxa, sem respirar ou arquejante. Há, em toda esta história o compasso dos atrasos, o assomo aflito de quem deseja ajudar; o pasmo, que é a secreta insígnia de quem se sente impotente para enfrentar a absurda autoridade do mal, e a trágica evidência do infame momento.

O pai do Rodrigo não acusa ninguém, leio no DN. Talvez atribua à má sorte a morte espantosa do seu bebé, conjecturo eu. O pai do Rodrigo é um pai que nunca vai deixar de o ser, embora o filho seja a ausência do estar, e a memória de um sonho feliz. O pai do Rodrigo vai preparar-se, devagar, para o eternamente inesquecível. Ainda não caiu bem em si. Confuso, perplexo, está tão longe estando tão perto. Olha tudo com estranheza e dúvida. E, no entanto, aquela hora medonha, a mediar o prazo entre a vida e a morte, nunca deixará de ser a marca de um sofrimento transformado em sacrifício.

E se alguma coisa tivesse sido diferente porque diferentes eram as circunstâncias? Se, no instante supremo, no instante pequeno, redondo e urgente, a mão da ciência, o auxílio preciso, o diagnóstico vigilante estivessem onde deviam estar? Não há mortes naturais. Todas as mortes são injustas como uma culpa infundada, e inúteis como uma heresia. Mas a morte de um bebé é a mais injusta de todas as mortes. Um bebé que morre não é, apenas, um projecto desfeito, um milagre anulado, um doce peso que se transportou nos braços, uma promessa incumprida e um desejo irrealizado. Um bebé que morre, e que morre assim, é uma acusação lívida, um dedo apontado, uma censura muda, porém terrível.

Acaso não fosse preciso telefonar para o 112, descrever sintomas, aguardar, durante 20 minutos, por uma viatura médica de emergência e reanimação, estacionada nos Covões, em Coimbra; percorrer, com o miúdo ao colo, o troço que vai do local onde a família vive para o sítio onde se encontrava um operador do INEM; assistir aos angustiados esforços da tripulação da ambulância para reanimar o bebé, que seria transportado, em desespero de causa, aos serviços pediátricos de Coimbra - acaso a Urgência do Hospital de Anadia não houvesse sido encerrada, acaso, acaso, acaso as coisas seriam outras. Os acasos funcionam, aqui, como a insensível desconstrução dos laços humanos. Os acasos ilustram, aqui, os malefícios provocados pelo desconhecimento ou pelo desprezo das emoções.

Observo a fotografia do pai sem filho. Se o espanto possui rosto: ei-lo. Se a resignação é o espaço esburacado onde tropeça toda a tristeza do mundo: ei-la.

Choro de Rodrigo. Birra de Rodrigo. Sorriso de Rodrigo - nunca mais."

-- os jogos dos acasos



"(...) Que dizia a voz, assim tão importante, que sobrelevava as instâncias dos meus impulsos de autor de imprensa? Era um homem. E fazia troça cruel de quem dele desacordava: de sindicatos, de jornalistas, de comentadores, de todos os partidos que não o seu, mas também de alguns daqueles, iguais comungantes, em atrito com o que ele fazia. Não percebi muito bem onde o homem falava: congresso, reunião, assembleia, igreja? Sei que o homem estava a deixar-nos para trás; e não há nada mais penoso do que sermos deixados para trás.

O homem na televisão era somente voz: voz que apenas a si mesmo ouvia; voz inevitável para ela própria; voz impessoal, velha, fatigada como uma solenidade, inconvicta, em pleno processo de desumanização. O homem falava para se ouvir. Falava; não estava a dizer nada.

Elogiava-se e ao Governo que dirigia. Na Saúde, na Justiça, na Economia, na Cultura, no Emprego, na Educação, nas Obras Públicas, tudo deslizava, com suavidade, para o irreversível ponto de exclamação que será a sociedade próspera e abundante. O absurdo atingia a dimensão da inconsciência abjecta. O homem na televisão deixara de o ser: era, unicamente, voz. Voz efémera, que desembarcava numa auto-admiração inviolável; voz de catálogo turístico.

As vozes humanas possuem cor, luminosidade, magia, transcendência, grandeza, música, presença física. A voz do homem na televisão era dissimulada, quadrada e cava. Uma mentira instantânea que se repetia sem perdão. Um eco do oco."

-- a voz na televisão

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