Os curricula vitae têm sido, ao longo dos anos, um género literário menosprezado. Há ali mais imaginação, criatividade e génio no emprego da metáfora e da hipérbole que em muito bom romance contemporâneo. Alguns chegam mesmo a ter mais caracteres que, sei lá, um Pedro Paixão.
Espanta-me, aliás, que a maioria das pessoas diga que não tem talento para escrever. Modéstia. É pedir-lhes o currículo. De imediato, seremos transportados para todo um universo onírico, uma realidade paralela, à maneira de Tolkien. Tudo deve ser simbólico porque, à primeira vista, nada tem a ver com a pessoa concreta que temos diante de nós. No papel, desfila um ser maravilhoso e interessante, cheio de interesses artísticos e aptidões. Mesmo que tenha 15 anos, ele consegue encher três a quatro páginas de experiências enriquecedoras de trabalho. Se, um dia, substituiu o tio no café, tem, prontamente, experiência no ramo da hotelaria. Se passou uma noite na cadeia por conduzir embriagado, realizou trabalho de investigação na área do Código Penal. Se levou cinco anos para fazer uma cadeira do curso com 10 e, certa vez, perdido do bar, entrou por azar numa AG, o que a sua verve literária dará a ler será qualquer coisa como: frequência da Faculdade de Direito de Lisboa e activismo académico.
Inevitavelmente, todos gostam de viajar, ler e conhecer pessoas. São amantes de cinema e sentem um inquietante interesse pelo Budismo, a aprofundar em breve. Gostariam de ser voluntários da AMI e são todos muito sociáveis, excelentes a trabalhar em equipa e com muita capacidade de iniciativa e dinamismo.
Ora, a pessoa lê isto, baixa o currículo e confirma: sim, quem está diante de nós continua a ser aquele mono flácido com aspecto de ter feito exercício pela última vez quando se baixou para apanhar a roca, algures em 72, e de ser tão sociável e interessante como um parquímetro, e pensa: génio! Puro génio literário!
E há mais. Apesar de alguns abusarem, o CV tem, na generalidade, a dimensão ideal para a sociedade contemporânea: dá para ler no metro, levar para a praia, entreter um bocadinho na sala de espera para a lobotomia. Não maça como o romance, é ainda mais económico que o conto e, apesar do aspecto enxuto, não é hermético como a poesia.
E há ainda aquele requinte final, soberbo: a escrita na terceira pessoa. Esse acordo tácito entre autor e leitor, essa rara cumplicidade… Como se não fossem sempre os próprios biografados a escrever, naquele tom desinteressado, sobre si, e houvesse por aí profissionais do CV, a redigi-los em barda sobre toda a gente fascinante que conhecem…
Em conjunto, os CV da Humanidade são toda uma “second life”, um programa idealista, a cidade de Deus. Só gente maravilhosa, culta e trabalhadora.
Para quando, Assírio & Alvim, uma antologia da novíssima curricula nacional? Um compêndio só com os melhores CV do Modernismo? Um livro de citações com as melhores passagens dos CV dos alunos da Escola Profissional da Boavista dos Pinheiros?
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