estou a fazer um esforço para não me sentir humilhada.
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h2o + 12.01
Telefonema escrito (Dezembro 2000)
António,
Achei melhor escrever-te. Há assuntos impróprios para o sinistro regateio dos nossos advogados, mas infelizmente os últimos telefonemas não foram um modelo de civismo, talvez ainda não estejamos preparados para falar sem duas pedras na mão. Concordarás que utilizando o plural recuso o papel da desgraçadinha cujo marido partiu e, não satisfeito com abandoná-la, lhe desliga o telemóvel na cara. Também eu já o fiz e quanto aos insultos, bem…, penso que vêm sendo democraticamente distribuídos. Dito isto, não penses que o Senhor me iluminou e tenciono fazer parte desse teu lamentável plano para apresentar ao mundo a separação como resultado de um acordo entre “duas pessoas adultas”. Não sei se somos adultos, mas tenho a certeza de que tu és adúltero ( não me admiraria se no caso dos homens os dois termos fossem sinónimos! ). Pelo que farás o favor de te amanhar com as consequências dos teus actos, seja a nível da sacrossanta família – a minha está elucidada… - ou dessa corja de machos latinos endinheirados a quem chamas, com assinalável optimismo e uma certa melodia siciliana, os “rapazes”. Os “rapazes”, diga-se de passagem, dirigem fábricas lucrativas, jogam ténis sem grandes resultados para o pneu e cobrem as costas uns dos outros quando saem à noite, mas não abandonam as queridas mulherzinhas. António, a tua fogachada vai contra as regras vigentes na tua própria equipa.
O que me intriga. Das outras vezes – ou pensas que não estou a par das tropelias anteriores? – foste sempre previsível: passarinho novo, uns dias de trabalho fora do país sem hotéis e países devidamente identificados, chocolates e sexo ( ainda mais ) distraído para mim, ego satisfeito, fim de semana em família na casa da Póvoa, jantar a dois no Casino. Até à próxima… Não estou particularmente orgulhosa por ter aturado essa rotina, mas também não me refugiarei no papel da defensora do bem estar dos miúdos. Continuámos juntos porque não desejava perder-te para uma qualquer flausina que as minhas cenas arvorassem em segunda mulher da tua vida - suponho que ainda te lembras de me considerar a única -, depois de saíres de casa o teu orgulho adolescente impediria uma reconciliação. No fundo cometi um erro habitual: amar o marido, aturá-lo como um filho traquina e esperar a acalmia dos anos.
Embora me revolva as tripas, sou obrigada a aceitar o diagnóstico dos que te conhecem o derriço: a rapariguinha está apaixonada por ti e não merece as frases que aliviam o fígado e preparam o perdão, género “a cabra roubou-mo porque os homens são uns anjinhos, sobretudo quando começam a envelhecer”. Sabes, é difícil abrir mão dessas frases feitas. As mulheres utilizam-nas para salvaguardar os seus homens e a intenção de lhes perdoar. Fazem-no à custa de os considerar débeis mentais, mas fazem-no, transformam-nos em pobres escravos das hormonas que outras, mais jovens e apetecíveis, manobram a seu bel prazer. Não te darei o benefício de tal ofensa, seria atentar contra a estatística. Ao longo dos anos coleccionaste estagiárias, clientes e muito provavelmente, bom…, senhoras da noite, agrada-te o eufemismo? Perante uma colecção para todas as estações seria ridículo partir do princípio que sistematicamente foste seduzido e abandonado. O inverso também não é verdade, por vezes penso que os homens casados têm mais saída do que os solteiros, talvez comprometam menos esta liberdade compulsiva que as miúdas de hoje tanto prezam.
A verdade é que por esta saíste de casa (a expressão “abandono do lar” não me parece adequada, atendendo ao registo de cama-mesa-e-roupa-lavada em que vinhas funcionando). Como já disse, pelo que de ti conheço o regresso está fora de questão, mesmo que o comodismo o exigisse, o tal orgulho macho não o permitiria. Deve ser cansativo, António, provar todos os dias que se é homem. E não às mulheres!, que não partilham os vossos critérios. Aos outros homens, quantas vezes me senti um pretexto para esses concursos de galos. Porque não arreiam simplesmente as calças e medem as gaitas? Afinal pensam com elas…
Não digo neste caso, já admiti que todos me dizem ter a miúda cabeça, para além de um corpo de anúncio televisivo. Mas terá sido “apenas” isso, descobriste pessoa inteira e não boneca insuflável de carne e osso? Porque não te limitaste a conceder-lhe os intervalos entre a fábrica e nós? As viagens de negócios, verdadeiras e fictícias? Por que arriscas a amizade dos amigos que, não a meu pedido!, se recusam a receber-vos? E o habitual desmaio da tua mãe? Fez-te descobrir coisas novas ou recuperaste com ela o que perdemos há muito? Vais partir noutra direcção ou regressar sem mim à estaca zero da nossa estrada? Em melhor companhia…, afinal ela tem menos vinte anos do que eu e outros tantos quilos, com inveja amargurada o digo! Porque neste mundo de homens vocês podem envelhecer tranquilamente e nós não, tudo o que a meia-idade traz de bom fica na penumbra da vossa rendição à imagem física. Mesmo que ultrapassemos incólumes os anos, as gravidezes, os problemas, mesmo que vivamos nos health-clubs os breves momentos entre as aulas dos miúdos e o trabalho chato e inacabado que nunca reconheceis, o vosso olhar embacia-se, sofre de “miopia conjugal”. Tirei um curso de Românicas para acabar tua mulher a tempo inteiro, mas ainda recordo Ovídio: “Eis a causa que impede as esposas legítimas de serem amadas; os maridos vêem-nas quando querem”. E onde está a alternativa, para uma dona de casa que tem de a manter a funcionar sobre rodas? Ir de férias com as amigas? Arranjar um amante com as vossas justificações habituais na manga, “querido, ele não significou nada para mim, já nem recordo a sua cara, sabes como são estas coisas, estava com a malta e tinha bebido muito, depois o tipo não me largava e eu cheia de medo que tu e os miúdos viessem a saber…”?. Merda, António, quase ficamos com a sensação de ter de vos agradecer as mentiras!
E como competir? Vocês saem a correr de manhã e deixam-nos em roupão, atarantadas, hesitantes entre os restos dos vossos pequenos almoços e o atraso dos miúdos, sempre avessos a deixar a cama. Na qual pensamos em plena correria, “há quantas semanas não fazemos amor e como o temos feito?”. Os homens acreditam com demasiada facilidade nas mentiras piedosas com que os sossegamos. Não imaginas as conversas que se ouvem num ginásio depois de uns quilómetros no tapete e um duche bem quente! As mesmas parvas que aturam as queixas de cansaço e a rotina erótica do Sábado à noite – fazes alguma ideia de há quanto tempo não me surpreendes? – suspiram pelo tapete da sala ou por automóvel de namoro, odeiam-vos a pressa já ensonada que as deixa despertas e a ferver. Entretanto suas excelências quedam-se, embasbacados, perante miúdas que vivem em casa dos pais e todas se aperaltam para o emprego. Dá-lhes vinte anos como os que vivi e veremos o que resta da sua frescura! Mas os homens não pensam nisso, vivem a meia-idade com desespero, procuram recuperar nelas um pouco do vigor que lhes sentem fugir. Supõe que chegas a velho - e espero que sim, os miúdos não merecem ficar órfãos, apesar do pouco que lhes vens ligando -, achas que a lua de mel será eterna? Ou tencionas pô-la também na beira do prato quando o hábito vos atacar? E ela, acompanhar-te-á sem dúvidas? Neste momento és o homem poderoso que por si abandonou uma família e lhe mostra o mundo, mas estará disposta a apagar-se contigo? Exigirá crianças? Admitirá como eu que durmas no quarto de hóspedes porque “tens de trabalhar” no dia seguinte? Que voltes à tua única paixão duradoura, a fábrica, e chegues ao fim da tarde para mergulhar no sofá e no zapping? E como reagirás tu à sua juventude? Com orgulho ou suspeitas? A menos que as cenas de ciúmes sejam um privilégio meu, é preciso ter lata para abandonar a mulher e depois largar-lhe remoques por ela ter ido ao cinema com um amigo de longa data. Meu pobre António, não me sinto hoje obrigada à discrição, se quisesse enganar-te poderia fazê-lo com alguns dos teus companheiros de borga, rondam como abutres. Aparentemente a famosa solidariedade masculina também abre brechas, algumas das escapadas no passado foram-me contadas por amigos teus, preocupados com o meu bem-estar e prontos a consolar-me. Não penses que preparo declaração da minha superioridade moral, não o fiz pela mais prosaica das razões: nunca me apeteceu. Escandalizado? As mulheres, meu caro, finalmente perceberam que apenas são mais fiéis do que os homens porque eles as convenceram de que eram assim. Não sou mulher de um homem só; gostava só de um homem.
Desculpa, acho que me passei, isto parece um telefonema por escrito, ainda aí estás? Espero que sim, precisamos de ter cuidado. António, vivemos numa terreola, em país pequenino. Como pensaste que poderias dizer aos miúdos que não os levavas à neve porque tinhas de sair em trabalho? E a esperteza saloia de fazer as reservas noutra agência de viagem e mudar de estância de Inverno! O gerente ficou eufórico com a hipótese de passar a ter-te por cliente e falou disso ao jantar, os filhos dele são colegas dos nossos, mas com menos dinheiro, vai daí quiseram ir à neve por interposta pessoa e perguntaram aos garotos como era em…, como se chama o sítio…?, pois, Courchevel. Os putos não têm culpa, António, deixaste-me a mim, não a eles, percebes? Vais afundá-los em presentes e jantares em restaurantes finos? Deixá-los com os Avós enquanto vives em lua-de-mel? Eu sei que andam difíceis, mas fugir ao seu amuo não é solução, afinal ninguém os consultou sobre este circo, compreendem como quase adultos e sofrem como crianças. O amuo serve apenas para te fazer insistir, precisam de ter a certeza que desejas a sua companhia. Por favor, pensa. Usa a cabeça e o dinheiro, pára duas semanas e divide-as irmamente entre os miúdos e a garota (não deixa de ser irónico como ela está mais próxima da geração deles do que da tua!).
Faz o que quiseres, mas não apenas o que te apetecer. Resolve o problema. Ou juro por Deus que não resistirei à tentação de desempenhar o papel da mãe sofredora e maltratada e virá-los contra ti. Que coisa horrível de dizer… Vês? António, precisamos de ter cuidado, toda esta amargura e ressentimento entre nós pode acabar mal. Como nós…
Escrevo-te ao fim do dia. Vinte anos atrás vinhas a correr da fábrica e fazíamos amor. Tinhas um brilho agarotado no olhar. Não me deixavas pôr a mesa, eu fingia um protesto, mas era pegar no casaco e partir rumo ao marisco de Matosinhos ou às tripas do Leonardo na Póvoa, de regresso a casa adormecíamos; abraçados e tarde. Quem sabe?, talvez eu encontre alguém, refazemos os dois as nossas vidas depois da nossa vida a dois. Que acabou. Mas António, não deixámos de ser pais por isso. Tem cuidado. Por eles, mas também por ti - a mim deixaste-me, a eles podes perdê-los. Estás preparado para isso?
Lena.
o-murcon-ataca-de-novo
Abuso de menor (Fevereiro2001)
- O João?
Olhos azuis-bebé em bebé envelhecido de alguns anos. Faces apetitosas e gorduchas, a Tia Amélia costumava chamar-lhe o seu leitaozinho porque dava ganas de o comer, acompanhado por batatinhas loiras - como ele… - e salada mista. Mordiscava-o com ternura carente de viúva longa mas não convencida, a sobrinha e protesto risonho, “ó Tia, parece impossível!”. Os mares assim espremidos, em forma de amêndoa, herdara-os do pai. Que os cuidasse bem!, nada mais restava do Pedro… Talvez o miúdo o pressentisse, quando exibia proeza aprendida com as avós - tinham-lhe ensinado a abrir os braços com ar desprotegido, deixar pender a cabecita para um dos lados e gemer lamento: “fuxiu…”. Dizia-o do gato, animal coerentemente esquivo e autónomo, senhor de si, nada sensível a chamamentos dos teóricos donos. Era habitante da casa com direito a cama, mesa e roupa lavada, mas tais privilégios básicos não o faziam sentir-se obrigado a responder presente a caprichos ditatoriais dos humanos. Dessa distância altaneira mas solidária não se podia gabar o Pedro, fugira como um rato. Ela sentada em banco de jardim para lhe dar as novidades - ou a falta delas! –, e ele pálido como os lençóis que não tinham partilhado, tudo acontecera prosaicamente no automóvel, depois de muitos copos e outros tantos bares. Atenção!, nunca utilizara o facto como desculpa. Também seria masoquismo falar de curte anónima de Sábado à noite, naquele tempo tê-lo-ia definido como namorado, hoje não, cada idade segrega os seus critérios para conceder estatuto de companheiro a alguém. Ele era bonito para além dos olhos, a cabeça não chocava por oca, mas sobretudo fazia-a sentir-se desejada, confundira isso com ser mulher. Não era. À distância dos anos via-se jovem e inexperiente, ansiosa por pequenas liberdades, como sair à noite, e grandes sonhos, como amor para toda a vida. Este não o confessava, por pouco cool. Mas lá no fundo de si, ele ria das frases definitivas derramadas sobre a mesa do café, “não quero amarras antes dos trinta, há muita vida por viver”. Sorriu. Que vivera com o Pedro, sobretudo naquela madrugada? O amor nem pensar, ao menos o desejo e o prazer? Para um não tivera tempo e mesmo o outro, muito sexo feliz depois, defini-lo-ia mais como curiosidade. Afinal as amigas falavam dele como profissionais, são precisos anos para descobrirmos todas as mentiras ditas nas conversas adolescentes. E é tão cansativo resistir fim-de-semana após fim-de-semana à insegurança macha dos homens, ansiosos por estarem à altura das loas exibidas nas mesas de outros cafés, quando não do mesmo. Tinham curtido. E a pergunta sinistra rodando-lhe na cabeça, “é só isto?”. À cautela não lho perguntara. Quanto ao prazer dele, não sabia. Curto fora de certeza!, egoísta como o de certos homens feitos que se estão nas tintas; e o de outros rapazolas, nervosos e apressados, de uma incompetência que seria ternurenta se não deixasse corpo e alma das mulheres a meio caminho. Como cantava a miúda na pimbalhada de Domingo?, ah, sim, a chuchar no dedo! O que lhe faltara de gozo tivera-o de medo, o imbecil nem um preservativo sabia utilizar decentemente, mas calara-se caladinho. Calada mirava ela incrédula o calendário, para quando o sangue tranquilizador? Não veio. Deu consigo na situação daquelas meninas dos anúncios patéticos da TV, no fim do exame olham com um sorriso pitonísico para a câmara, a quem vê de decidir a razão da alegria silenciosa. No seu caso não teriam dúvidas, chorara como uma Madalena arrependida. Bom, talvez mais surpreendida, não pensara que lhe pudesse acontecer, quem pensa, ainda por cima na primeira vez? O olhar dos pais diferente, pelo menos na cabeça dela, a todo o momento pressentia o dedo acusador e a pergunta, retórica por apenas exigir a confirmação da catástrofe. Já o Pedro não desconfiara de nada, aparecera com o sorriso habitual, a moto habitual, a inconsciência habitual. O movimento de recuo e o olhar acossado, “que vais fazer?”. Não tivera a delicadeza de empregar o plural, entrar no comboio sem travões que a levava mundo abaixo, a participação dele no evento terminara no preciso momento em que puxara as calças para cima. Ela não estava ainda preocupada com a decisão, antes disso precisava do mimo que lhe provasse não ter de se afligir sozinha. Tão sozinha como ele a deixara, para depois telefonar com um discurso de inspiração materna - “somos novos, os estudos, quem sabe um dia?, mas não agora, tenho um número de telefone…”. Literalmente – puta que o pariu! Considerara a hipótese do aborto seriamente, defendia-o em abstracto e em concreto dera o voto pela sua despenalização. (Não chegara porque muitos tinham preferido a praia e outros lavavam as mãos como Pilatos enquanto se crucificavam pobres mulheres.) Tinha a certeza que o teria aconselhado a qualquer amiga nas suas condições, mas uma raiva solitária a invadira, depois dele fora vez do pai se pôr de fora. Acontecia sempre assim em alturas de crise, preferia saber e depois fingir que não sabia, a mãe falava pelos dois em ar de mistério, “se o teu pai sabe…”. E também acabara por a deixar sozinha, porque no meio dos argumentos do costume deixara cair frase lamentosa que a reduzia a apêndice mal comportado, “como foste capaz de nos fazer isto?”. Um desejo imenso de ter alguém consigo e para si, não é uma boa razão para encomendar uma criança à cegonha, mas fizera-o. O sofrimento teatral dos pais abafando o seu e ela de imediato inflexível, “vou trabalhar”, precisava de independência para os olhar de frente. Pelas costas viu o Pedro, balbuciando promessas vagas, correndo para a mamã, porque raio há-de ser fértil o esperma de putos assim? Anos duros e órfãos de homem. Trabalhava com uma ferocidade automática, regressara aos estudos à noite, a mãe agradecera a Deus o álibi para gozar o neto algumas horas por dia, o puto reconciliara a família à sua volta, o pai sempre desejara um rapaz e a mãe afogava a solidão em remédios para os nervos. Mas quem não casa quer casa, resistira aos apelos deles e alugara o seu apartamentozinho, o único luxo fora a aparelhagem estereofónica, quem consegue viver sem música? Sem homem sobrevivera bem. Nem sequer à espera de príncipe encantado ou refugiada no ressentimento que os define como todos iguais apesar de só se ter conhecido um. Repartia-se entre o trabalho e o miúdo, adormeciam apaixonados todas as noites. Até aparecer o João. Moreno e sisudo, avesso a motos, palavras raras, um olhar meigo que a admirava, longínquo, da secretária ao lado da sua; as mulheres sentem essas coisas. E assim ficara, mudo durante meses, até o convite pressentido se ter tornado improvável e as colegas já não se meterem com ela, quase caíra quando lhe propusera um cinema. O namoro que conhecia dos livros, João era gentil, com as suas flores roubadas pelos canteiros e mãos suaves, descobriu que o corpo lhe uivava de fome em silêncio no apartamento dele. Quase igual ao seu, com vergonha o admitia – um pouco mais arrumado. O primeiro passeio com o filho e este desconfiado, farejando concorrente, quando chegaram a casa espetara o dedo, solene, “agora vais-te embora”. E João fora, perdido de riso. E humilde voltou, acedeu em seduzir dois ao mesmo tempo, ela preocupada, “será que o puto um dia aceita?”. Dentro de pouco tempo o ciúme transferira-se para ela, o filho encetara namoro descarado ao par de calças que de vez em quando apareciam lá por casa e João, esse, transformava-se por completo, era preciso interceptar os chocolates e os brinquedos, “olha que o estragas!”. O que fazia na mesma, oferecendo-se em substituição das guloseimas e rebolando pela alcatifa em coboiadas trepidantes que terminavam com tiros definitivos - ele jazia mais quieto do que após o amor, e o puto escrevia-lhe o epitáfio com voz triunfante, “morreste”. Até necessitar de parceiro para a próxima brincadeira e o ressuscitar, com a naturalidade de quem ainda não descobriu a outra morte e apenas conhece a dos bonecos na televisão, engraçada de tão reversível. Anos bons, com uma só regra - de futuro não se falava. Não porque ela o não pensasse, mas porque desenvolvera uma espécie de superstição que a fazia sacrificar os sonhos longínquos para beber um niquinho mais de vida no presente. E fora ele a romper o acordo, “porque não vivemos juntos?”. A economia do seu lado, com o dinheiro poupado sempre poderiam respirar um bocadinho melhor; viajar. Mas o medo era mais forte, “não quero”. E ele, sempre manso, empertigara-se, “não gostas de mim”. Do que ela também se queixara de imediato, toda a gente sabe que não há saída dessas discussões, ambos mal amados ou certos disso, vai dar ao mesmo. A primeira zanga séria, até aí só conheciam arrufos que apimentavam a noite seguinte, ele de súbito muito calmo, “pensa e depois diz-me alguma coisa”. Ela pensando há semanas e o miúdo desconfiado. No emprego eram corteses, mas João ia deslizando para a frieza e ela utilizava-a como desculpa para se convencer de que o melhor era ficarem como estavam, se ele não queria paciência, tudo tem um fim. O medo pânico de um dia, quando já não conseguisse viver sem ele, vê-lo partir. Era independente à custa de dentes cerrados, se o deixasse mimá-la ainda mais poderia não ter coragem para arrancar de novo sozinha.
- O João?
E o telefone logo ali, a cama vazia juntando-se ao miúdo, o medo ganindo avisos, a tentação pintando-lhe trio feliz, quem sabe?, um irmão para o puto, que os filhos únicos são egoístas até mais não.
- O João?
O abuso de menores.
- Queres telefonar-lhe?
O garoto arrulhando ao telefone e estendendo-lho. Do outro lado um João tenso,
- Sei que isto não é correcto, mas podemos ir dar um passeio, eu e ele? Acho que o miúdo gostava e eu tenho saudades.
Também ela tinha, disse que sim. E quando João chegou, seguiu o filho carripana dentro e admirou-lhes em silêncio o abraço apertado.
João fazendo das tripas coração para não engolir o orgulho,
- Deixo-te onde?
E ela a coberto do riso,
- Livra-te de o fazeres nos próximos cinquenta anos.
Ele mudou-se à noite. Deitaram-se tarde porque o miúdo estava excitado e nunca mais adormecia. Seguiram-lhe o exemplo.
Felizmente havia pouco trabalho no escritório na manhã seguinte.